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Percepção de algo a partir de um ponto...


Alienação...

Mecanismo que desperta em nós o desejo de impor um valor, uma “verdade”.

Inflexível como pedra, o encantamento persiste: o absurdo não vê o absurdo.

E, incontinente, palavras presunçosas nos escapam da boca,

produzindo ao nosso redor resistências, desconfianças...

Esquecemos que a urgência de um querer nos faz manipuladores.

Esquecemos que palavras nascidas dessa fonte são pobres signos:

forma desconectada de sua substância.


Carência de autoafirmação...

Sentimento que nos leva para longe, muito longe.

Percepção esmaecida de nós mesmos.

E assim, feito um rastro, preciosos bens são deixados para trás...

Inflexível como pedra, o encantamento persiste: a necessidade só vê a necessidade.

Esquecemos que as crenças são desprovidas de vínculos:

extremidades que não acham onde se atar...

E as mesmas pobres palavras nos escapam da boca, cada vez mais abstratas...

Ilusão da alma.

Dualidade da alma.


Mas como se livrar dessa danação, desse feitiço?

Talvez a resposta esteja no jardim...

A rosa não precisa defender sua beleza, seu fascínio.

Para ela, em silêncio, basta ficar ao vento, pois o perfume é seu fiel agente.






                        
               Beatriz,

               minha memória, com linhas imperfeitas,
               
               insiste em tecer sua misteriosa face:
               
               pó de giz que o tempo suavemente desfaz...







Capítulo 1




Agosto de 2006... 

Corre a tarde em meus olhos. É inverno. Solitário, retorno de mais uma reunião, retorno de mais uma tentativa de por fim ao meu desemprego. O micro-ônibus segue vazio. Em tempo, recordo fragmentos do encontro que tivera duas horas atrás, no belo anfiteatro da escola.

O início da reunião fora um sucesso. Por uma hora, falei sobre a metodologia pedagógica adotada nas escolas de Ensino Médio; do quão desatualizadas estavam no tocante às novas estratégias educacionais. Falei das transformações — positivas, em alguns aspectos — pelas quais os jovens passaram na última década no tocante à inteligência imaginativa; também falei sobre livros, apostilas, televisão, internet, linguagem... Depois, confiantes, saímos para o café. E todos estavam de acordo com o ponto de vista apresentado, com as argumentações: tão bem fundamentadas, diziam eles, entusiasmados.

Na parte final, porém, o desastre foi total, pois os alertei da necessidade de uma urgente mudança, e também das implicações naturais que essa nova postura traria. Foi um choque! Na medida em que avançava nas argumentações, os olhares das coordenadoras foram ficando frios, e seus semblantes, pálidos. Por um instante, talvez levado por uma ilusão, esqueci-me de que é mais fácil reagir do que refletir. E foi aí que me dei conta do que fizera: mexera num vespeiro. No desenrolar das explicações, comecei a por em risco algo precioso que estava ligado àquelas pessoas: suas intocáveis zonas de conforto. Sim, uma região psicológica sensível, povoada de fantasmas, de melindres. Toquei com mãos profanas em conquistas sagradas: funções, posições e cargos alcançados a duras penas, ano após ano, muitas vezes por intermédio de sacrifícios pessoais: pequenos favores, apoio psicológico em momentos difíceis, mimos. Esqueci-me que suas histórias estavam apoiadas nesses cargos. Vidas dependentes de tão frágil condição: personagens sem almas. A uma só vez, notei que havia naqueles semblantes um misto de sentimentos: por um lado, o entusiasmo dos mais jovens, mais atualizados e ávidos por mudanças, cujos sorrisos se abriam diante das novas possibilidades; por outro, a angustia estampada no rosto dos mais antigos, há décadas parados no tempo, cujos diplomas jaziam rotos em algum velho armário. Então, diante do incerto futuro, começaram a se sentir ameaçados.

De repente, antes mesmo que eu terminasse a apresentação, os nervos da diretora não aguentaram...

— Não! Por favor não, não dá mais... Agora eu tenho que ir!

Com seu autoritarismo tosco e mal disfarçado, como se tentasse extrair da carne um espinho, ela interrompeu minha fala! Foi um corte seco e inesperado. Em seguida, determinada, pôs-se de pé e prosseguiu:

— Foi um prazer tê-lo hoje conosco, professor! Mas agora eu tenho mesmo que ir — justificou a sexagenária senhora.

— O prazer foi todo meu, diretora — disse-lhe irônico.

— Se o projeto for aceito, entraremos em contato com o senhor, está bem?

Pelo tom de voz, sabia exatamente quando me procuraria: nunca!... E minha mente ficou turva; confuso, perdi a noção do tempo e do espaço, como se fora sacudido por um tremor de terra. De forma bastante imprecisa, comecei a recolher os vários experimentos que havia preparado para a palestra. Para mim, agora, apenas fragmentos de uma recusa, cacos de uma decadência que voraz começava a me consumir. Percebendo minha dificuldade, alguns jovens professores me ajudaram a colocar cada um daqueles objetos na sacola; e, desnorteado, saí do local...

E o micro-ônibus segue sua interminável viagem. Entre freadas e solavancos, procuro suportar o peso dos acontecimentos, e também desta sacola: objeto abstrato (tão ilusório quanto o beijo da primeira namorada). No dia anterior, enquanto a arrumava, sonhava com as possibilidades que o encontro poderia suscitar; mas, como quase tudo na vida, as coisas não saíram como o esperado... A confissão me é difícil, mas temo não suportar o termo desta recusa, temo não recobrar mais minha alegria, que tão fiel me acompanhou por todos esses anos.

E aqui estou, sob um céu de chumbo, vagando por esta tarde de inverno, aninhado neste pequeno e aflitivo espaço — é o que meu mirrado dinheiro pode pagar. De repente, volto meus olhos para a janela, mas a aparência fugidia da paisagem em nada mudou. São as mesmas casas sem cores, o mesmo céu cinzento, a mesma vida sem sentido. Fecho os olhos e busco na imaginação alguma forma que me favoreça. O que necessito para o momento é algo que possua cor, alguma matéria aprimorada por mãos criativas. Preciso encontrar alguma coisa que me tire desta solidão, pois sinto que minha alma, desapontada, afastou-se de mim. Assim, timidamente, peço-lhe desculpa pelo mau jeito.

Há sempre dois modos de se lapidar nosso gênio, dizem... Um, através da sensibilidade, a distância; outro, pelo sofrimento da carne ou da alma. O primeiro, asséptico, exige de nós apenas um estado de contemplação, uma discreta harmonia entre corpo e mente; o segundo, visível, decorre da ausência dessa harmonia. Agora, assediado por confusos sentimentos, sinto-me pertencente à segunda condição. E, enquanto perdura a travessia, sigo solitário em meu sofrimento, à deriva...

Hoje, favorecido pelo tempo, compreendo que me doei demais aos projetos, às pessoas... Muito além do que eu poderia, feito a extenuada maratonista suíça Gabriela Andersen que, na ânsia de chegar com suas próprias pernas à linha de chegada, cambaleante, usara da reserva de energia que a mantinha lúcida e coordenada. Naquele momento, como Gabriela, talvez fosse eu o enlace entre essa misteriosa força e a sua posterior fragilidade. Impossível não lembrar das palavras de Jean-Claude Carrière: 

Cada vez que um indivíduo tenta ir além dos limites humanos comuns, encontramos esse sentimento de tensão, de perigo... O que faz nossa raridade é a mesma coisa que nos fragiliza. Nosso ponto forte é o exato centro de nossa fraqueza...

Num instante me vem à mente uma frase que um amigo certa vez dissera: 

Nós estamos onde nos colocamos... 

Assim, ao cair da tarde, sob uma atmosfera de melancolia, pensei: “Mas onde foi que eu comecei a errar? Quais foram os equívocos que me conduziram a tal condição?” Então, procuro investigar, em algum esconderijo do meu passado, numa porção de minha existência não tão distante ainda, onde tais equívocos poderiam estar adormecidos. 

Havia horas que eu não me alimentava; no café, durante o intervalo da fatídica reunião, foram tantas as perguntas que mal tive tempo de tomar um copo d’água... Agora, suspeito que o frio, a sede e a fome me levaram, num piscar de olhos, para outro inverno em que, como num relicário, talvez estivessem guardadas essas respostas...








Capítulo 2






Agosto de 2002...
Um vento fino e cortante avançava pelo pátio da escola, agora vazio. E todos já tinham ido embora: os alunos, os funcionários, os professores... Tudo estava calmo, angustiantemente calmo. Após um dia numeroso, sentia-me esgotado: participara de cinco reuniões, dera seis aulas, redigira vários documentos... Passando das oito da noite, no limite das minhas forças, tentava fechar o caixa da escola. À tarde, minha coordenadora se sentira mal e tivera de ir embora.
Estava com frio, com fome e com sede, mas preferi insistir e terminar logo aquele enfadonho trabalho. De um instante, anunciando sua chegada ao andar, ouvi a campainha do elevador ferir o ar... “Deve ser o síndico”; pensei, pois era comum sua presença no final do expediente, principalmente nas noites de sábado.
Segundos depois, ouvi batidas secas de saltos contra o piso de mármore. De onde estava, debruçado sobre o balcão e atrás da máquina registradora, não me era possível ver o que se sucedia na entrada da escola, que se abria após o átrio, onde ficavam os elevadores. Inclinei-me um pouco mais para frente e vi, com clareza, quem vinha em minha direção.
Era uma jovem trajando uma túnica marrom, cujo tom realçava ainda mais a cor de seus cabelos: longos, castanhos claros, lisos e repartidos ao meio. A túnica, curtinha, revelava a sensualidade de suas pernas: longilíneas e nuas. Pernas que, desconcertantes, flutuavam em minha direção. Ao se aproximar, percebi que era bem alta: com as botas, devia chegar a 1,90 m; pois, assim que se postou ao meu lado, pude contemplar seus lindos olhos azuis no mesmo plano dos meus. Então fui surpreendido por um olhar de ternura, de magia... Olhar que trazia em si certa intimidade.
— Olá, deseja algo?
— Sim, professor!
— Como sabe que sou professor?
— Suas mãos estão sujas de giz...
— Ah, sim! Perdoe-me, preciso lavá-las — e saí, calmamente.
Já no banheiro, deixei que a água corresse sobre minhas mãos. Quieto, fitando-me através do espelho que encimava a pia, por um instante ali fiquei. Sem saber o porquê, suspeitei que algo havia se partido dentro de mim. “A lógica natural de um primeiro encontro?”; perguntei-me. Porém considerei uma alegria ser surpreendido por aquele olhar, por aquela presença. Embora tivesse um aspecto de menina, ali se revelava, nas maneiras, uma mulher determinada, objetiva e sabedora do que queria... E, calmo, retornei ao balcão.
— Pronto! Já estão limpas. Sabe...
— Beatriz, este é meu nome!
— Muito prazer, meu nome é Pélico — e lhe estendi a mão, ainda confuso.
Em vez de apertá-la, preferiu segurá-la com as duas mãos e levá-la até os lábios. Após beijá-la, lançou sobre mim um olhar repleto de emoções. Tímido apenas sorri; e disse-lhe:
— Sabe, após as aulas, nem percebo que trago as mãos sujas de giz. Penso que este pó já faz parte do meu corpo, já corre livre em minhas veias... Até minha alma talvez esteja impregnada dessa presença.
— Há quanto tempo dá aulas?
— Há mais de quinze anos! Você nem tinha nascido, não é?
— Quantos anos acha que tenho? — após a pergunta, afastou-se um pouco e olhou-me gravemente...
— Duvido que tenha mais de quinze anos!
— Errou! — e caminhou em minha direção. Próxima, com um malicioso sorriso, com o dedo tocou levemente a ponta do meu nariz, e disse:
— Já tenho dezoito anos.
— Estou surpreso! Achei que fosse apenas uma menina que cresceu demais — e ela sorriu.
— Mas você ainda não me disse o que deseja, não é?
— Quero me matricular no cursinho, é possível?
— Bem, faz quinze dias que o semiextensivo começou.
— Não importa, quero me matricular assim mesmo.
— Você conhece a escola?
— Sim, já tenho informações suficientes. Mas gosto de vivenciar as coisas, entende?
— Claro, também prefiro esse caminho.
— Então, aqui estão as cópias dos meus documentos e o dinheiro de que precisa. Pela manhã, telefonei e peguei as informações com sua coordenadora. Aliás, ela foi muito gentil comigo — “Com sua coordenadora? Como sabe que sou o proprietário?”; pensei.
— Ótimo! Sendo assim, vou colocar tudo dentro deste envelope. Segunda-feira ela mesma formaliza sua matrícula, está bem?
— O senhor já está de saída?
— Sim, por quê?
— Gostaria de sair em sua companhia... É tarde e essa rua não me parece confiável, não é?
— É verdade. Venha até o escritório, preciso pegar minhas coisas.
Ao sair do balcão, lancei sobre ela um discreto sorriso, que atenta me olhava, e caminhei em direção ao corredor.
O acesso ao escritório se dava por um longo, escuro e tortuoso corredor, que contornava a grande sala da escola. Após a primeira curva, era possível avistar a parte da frente da sala de estudos, mas as lâmpadas estavam apagadas. Depois da sala de estudos, havia uma pequena sala que foi reservada aos professores. Ao lado, finalmente o escritório: antigo e suntuoso, com suas altas e amplas prateleiras de cerejeira.
No corredor, ouvi o som seco do toc-toc das botas de Beatriz, que me seguia logo atrás. Por um momento, senti a força da sua presença, e um leve arrepio me correu pela coluna. Enquanto caminhávamos, o corredor foi ficando mais escuro. Diminui o passo, e o som oco das batidas contra o piso se acalmaram. Então senti a mão esquerda de Beatriz tocar minha cintura. Parei. E o seu corpo se chocou contra o meu. Por instantes, Beatriz se manteve bem encaixada em mim... E, enquanto os rígidos seios pressionavam minhas costas, sentia sua respiração ficar cada vez mais ofegante. Mais embaixo, era possível perceber as contrações ritmadas de seu abdome, feito ondas tateando meu corpo... E o tempo parou.
— Professor! Não estou enxergando mais nada — disse Beatriz ao meu ouvido.
— Venha! Logo à direita há um interruptor.
Então prendeu minha mão na sua e um ligeiro carinho se seguiu. Com a proximidade, senti a fragrância de lavanda exalar de seu corpo, e minha alma flutuou. Já não sentia mais cansaço, nem fome, nem sede... Minhas necessidades básicas foram substituídas por sublimes sensações, que revigoraram meus sentidos. Mas pouco durou, pois logo alcancei o interruptor e caminhamos na claridade para o escritório.
— Estou cansada... Posso descansar um pouquinho?
— Fique à vontade! Enquanto se recompõe, vou preparar a agenda para a segunda-feira...
— Quando começou este projeto?
— A escola foi aberta em 2001, mas me preparei por sete anos para chegar a essa concepção.
— E qual é o propósito?
— Bem, trata-se de um projeto assistencial, voltado às pessoas de baixa renda que desejam ingressar nas Universidades Públicas. No início, tínhamos apenas duzentos alunos. Hoje, contamos com mais de mil alunos, e a tendência é crescermos ainda mais.
— Fico feliz...
— Obrigado!
E Beatriz se recostou na cadeira, pacientemente me olhando, como se há muito tempo soubesse quem eu era...





Capítulo 3





Brancas, de um mármore quase translúcido, as escadas pareciam ondular no espaço vazio, suspensas. Nas laterais, paredes na cor pêssego davam ao ambiente certo requinte. No teto, também branco, pequenas luminárias dardejavam fachos de luz, que suaves declinavam sobre os degraus. Para subir um andar, era preciso vencer dois lances de escada: separados por um patamar retangular, virando-se sempre no sentido horário.
Enquanto caminhava para cá, sob um céu de infinito azul, guardava nos olhos o cair da bela tarde de sexta-feira: caminhada que revigorou meu espírito e me devolveu a paz tão desejada, após um difícil dia de trabalho.
Encantado, seguia em direção ao terceiro andar. Ao subir, cada lance de escada que vencia outro se abria, dando-me a sensação de estar sempre diante de mais uma página em branco. A impressão vinha da luz que morria nas quinas dos degraus; onde, sobre o piso branco, suaves linhas horizontais se formavam: imaculadas superfícies pautadas de papel, páginas à espera de uma história.
No sábado anterior, cautelosa, Beatriz solicitara minha companhia. Educadamente, prontifiquei-me a levá-la até sua casa, pois dissera que morava num apartamento próximo ao centro, no elegante bairro de Higienópolis.
No carro, apesar do curto trajeto, trocamos algumas informações: disse-me que, acompanhada de uma amiga, viera do interior do Estado para uma breve temporada aqui, na Capital. Disse-me ainda que gostou do modo como vinha sendo tratada pelas pessoas desta cidade, cidade interminável. Assim que estacionei o carro na frente do prédio, ela desafivelou o cinto de segurança e voltou-se ternamente para mim:
— Obrigada, professor! Foi muito gentil de sua parte...
— Não por isso, querida!
— Quer subir e tomar um cálice de vinho? Sinto-o tão tenso.
— Sim... Estou passando por um momento difícil.
— Entendo. E então, quer subir?
— Melhor não! Algo me diz que não serei uma boa companhia hoje, estou demasiado cansado para me alongar em qualquer assunto...
— Escuta, sexta-feira que vem, à noite, estarei sozinha. O que acha de vir me visitar?
— Assim fica melhor...
Na semana seguinte, nos quatro primeiros dias, Beatriz ficou o tempo todo na escola; mas, curiosamente, não assistiu a nenhuma das minhas aulas. Nesse período, sequer me procurou para conversar. E também não a vi portando cadernos ou apostilas... Mistérios!
No entanto, no final da tarde de quinta-feira, inesperadamente ela me abordou no pátio para reclamar o encontro:
— E então, professor, posso esperá-lo amanhã? — disse-me discretamente ao ouvido, num momento em que não havia ninguém por perto.
— A que horas? — perguntei.
— Às 18h está bom?
— Está ótimo!
Enquanto subia, pensava no modo como me olhou pela primeira vez, no delicado contorno de seu rosto, na força acolhedora de sua presença. Grande demais era minha expectativa em relação ao encontro; porém, ao mesmo tempo, havia um pesado desconforto, uma espécie de vertigem: como aquela que nos chega quando nos aproximamos de um abismo — sentimos, a um só tempo, medo e uma doce compulsão para o libertário salto em direção ao vazio...
Quando alcancei a metade do último lance rumo ao terceiro andar, ouvi um clic seco e metálico de destravamento de porta. Imediatamente, um pequeno facho de luz se abriu, formando um triângulo obtuso sobre um tapetezinho que trazia, ao estilo renascentista, algumas estampas associadas ao mundo grego... Entrei!
A vista era encantadora. Ao fundo, as duas persianas, de um tecido translúcido, estavam descidas; porém traziam suas lâminas horizontais ligeiramente voltadas para cima, permitindo os avanços dos raios de luz da tarde que se despedia. Raios macios e avermelhados que ascendiam ao teto, tingindo de tons sépia a transparência do ar, como se fossem reflexos das cenas desenhadas no tapetezinho da porta de entrada.
Ao abrir a porta, via-se um corredor com aproximadamente três metros. No início, à esquerda, havia uma pequena cozinha. No final, num mesmo espaço se abriam dois ambientes. Aliás, duas salas: a de jantar e estar. Na sala de estar, dois sofás e uma pequena mesa de centro compunham o mobiliário. Antes da sala de estar, abrigada por duas paredes, havia uma pequena mesa de jantar para quatro pessoas: em cada parede, retratando nus femininos, duas pinturas a óleo davam graça e sensualidade ao ambiente. Então, calmo, sentei-me no canto do primeiro sofá, mas não chamei por ninguém, pois sabia que ela viria ao meu encontro.
De repente, vindo de um dos cômodos, comecei a ouvir uma das minhas músicas prediletas: Aubrey, interpretada pela banda Bread — talvez a mais delicada canção que já ouvi. Agora, mais relaxado, deixei meu corpo deslizar um pouco mais e apoiei minha cabeça no encosto do sofá. E assim, lentamente, fechei os olhos... e meus sentidos entraram em perfeita sintonia com os acordes da música. Após respirar profundamente, senti uma suave fragrância de lavanda chegar com o ar, já não me pertencia mais: com ela flutuei... levíssimo. De um instante, comecei a sentir a forte presença de Beatriz. Abri meus olhos e a vi, feito uma miragem, sentada no outro sofá.
E lá estava ela, olhando-me ternamente, sem nada dizer. De quando em quando, mudava de posição e abria um sorriso, mas permanecia assim, discretamente calada...
Imenso era o silêncio entre nós. Gentil, creio que apenas esperava meu lento despertar. E mais uma posição, e mais um sorriso se seguiu, até que finalmente falou:
— Como vai, professor?
— Bem, muitíssimo bem!
Seu curtíssimo vestido de seda, branco, revelava suas longilíneas pernas. Era tão leve que, a cada posição, inflava disforme feito um balão. Depois, sobre o delineado corpo, de mansinho ia se assentando, centímetro por centímetro. Estávamos serenos, um de frente para o outro, pacientemente nos contemplando. Após um sorriso malicioso, Beatriz se levantou e foi em direção à cozinha. De um instante, retornou trazendo duas taças de licor e dois copos com água, simetricamente posicionados sobre uma bandeja de prata.
— Você vai adorar este licor! Mas antes tome um pouco de água — com sua mão branca, feito uma peça de porcelana, entregou-me o copo com água. Bebi de um só gole.
— Como sabe que gosto de licor? — disse-lhe com a voz aveludada enquanto apanhava uma das taças.
— Foi apenas um palpite — disse Beatriz, já se acomodando no outro sofá, na mesma posição que estava antes.
— Hum... É de jabuticaba!
— Sim! É o meu preferido — disse Beatriz, como que sabendo que esse também é o licor de que mais gosto. 
Ao término do último gole, fechei bem meus olhos e me soltei por um mar de impressões: o gosto exótico na boca, a suavidade da música, o delicado perfume de Beatriz e sua imagem, ainda ondulando em minha retina, levaram-me a um estado de suspensão... Sonhei!

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