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     O MISTERIOSO PROCESSO DA CRIAÇÃO LITERÁRIA/Parte 1

     Como os elétrons que se aventuram em pequenos saltos quânticos, assim se expande a sensibilidade de um escritor. Sob o feitiço de um fato grandioso, no silêncio das horas, ela se apura: em precisão, em detalhes, em vida... E os motivos são diversos: um grande amor, uma obsessão, uma desilusão...
     Para mim, vale também a descoberta de um grande texto... Certa vez, li “As Vinhas da Ira”, romance do escritor norte-americano John Steinbeck. Na época o considerei um bom livro, nada mais. Anos mais tarde, deparei-me com um texto complementar de Steinbeck no qual revelava os motivos (ou circunstâncias existenciais) que o levaram a escrever o livro. Pronto! De um instante, deu-se o “salto quântico”, pois minha percepção em relação ao texto foi imediatamente transformada. É raro termos acesso a textos assim, em que o autor, de forma franca, desnuda-se diante dos leitores. Graças à generosidade de Steinbeck, pude, como os elétrons, dar um pequeno salto.
     Por isso me animei a escrever o texto que segue. Nele, revelo as circunstâncias que me cercavam quando escrevi dois dos meus romances: Infinito Amor e Santidade Mestiça. Espero que gostem...





                        O fato central de minha vida
                        foi a existência das  palavras
                        e a possibilidade de tecê-las
                        em poesia.

                                            Jorge Luis Borges





     1.





     Era inverno, e um vento gélido vagava por debaixo das poltronas, paralisando meus pés. Entre duas rígidas poltronas, espaço demasiado pequeno para minhas longas pernas, sentia-me sufocado. Estava na parte de trás de um micro-ônibus, que lento seguia para o bairro onde moro, na periferia de São Paulo.
     O céu era cinzento, e as casas que passavam demoradas diante da janela estavam sem cores, sem vida. Pareciam todas feitas da mesma matéria: barata e esbranquiçada. Pareciam todas feitas pelas mesmas mãos: cansadas e mal pagas. Tudo tão igual, tudo tão monótono...
     Vida monótona, alma vazia, sentidos esmaecidos. Buracos, solavancos e freadas; e meus joelhos jogados contra o torturante encosto da poltrona da frente. Espaço pequeno demais para conter meu tamanho; corpo pequeno demais para conter tanta tristeza... Sofria!
     Como a viagem, minha vida era solavancos, rejeições. Por razões que fugiam a minha compreensão, sentia meus dias se transformarem em uma sequência de intermináveis nãos.
     Retornava de mais uma reunião, de mais uma recusa... Por dois meses, com afinco, trabalhara ao computador compondo um projeto pedagógico. Era para uma grande escola. O objetivo? Diminuir a rejeição que os alunos sentiam em relação à Física, mas minha ousada proposta não foi aceita.
     Antes disso, por um ano trabalhara em outro projeto pedagógico: para uma Universidade. Projeto grande, que fora intermediado por uma empresa especializada em IT (Information Technology), que então me contratou para fazer noventa por cento do projeto. Após árduo trabalho, só me pagou cinco por cento do lucro: uma ninharia.
     Mas enfim, naquela tarde imaterial, o micro-ônibus chegou ao seu destino: terminava a longa viagem.
     O ponto dava para uma pracinha rústica, adornada de arvorezinhas. Sob uma delas, ao centro, um banco de concreto se erguia do chão desnudo. Do chão, vivas se destacavam algumas raízes: feito tensas veias afloradas à pele. Notei que o banco estava vazio, a pracinha e seu entorno estavam vazios.
     Súbito o lotação partiu, deixando-me abandonado no alto do morro. Meus joelhos pediram um descanso. Após um breve caminhar, fatigado, tomei assento no banco. Por entre as nuvens, um tênue facho de luz se insinuou, iluminando as folhas ressequidas que jaziam pelo chão. Meus olhos, abstratos, viram-nas como um véu levemente sacudido pelo vento.
     Enquanto do alto contemplava o belo vale, talvez já cansado da vida que levava, de um instante resgatei da memória um antigo projeto de vida...





     2.



     Já passava do meio-dia, e a doce claridade da primavera vazava pelas vidraças que encimavam a sala. Os alunos tinham ido embora. Mas eu permanecia ali, estático na cadeira, com o material ainda espalhado sobre a estreita mesa. Estava em êxtase, a contemplar o presente que acabara de ganhar: um luxuosíssimo livro com capa dura, onde prevalecia a cor vermelha. Depois de folheá-lo um pouco, voltei para rever sua capa, e lia: “Vinte Mil Léguas Submarinas”. De um instante, ouvi uma doce voz dizer:
     — Tchau, meu querido, já vou indo...
     Era Ana Maria que, da porta, voltara-se para mim, com seu olhar terno, e belo... minha professora!
     Às vezes, quando a sós ficávamos, ou quando próxima me seguia em alguma lição, pedia-me:
     — Por favor... Não me chame de dona Ana, ou mesmo de professora. Diga assim: Ana. Está bem? Afinal, você é o meu namorado, lembra-se?
     E carinhosamente passava a mão sobre minha face, e feliz ela abria um sorriso. Sim, era bela! Uma das mais belas mulheres que já vi... Fora ela quem me dera o presente — por ter alcançado naquele ano a melhor média de notas da turma.
     Não mais me separei do livro. Levava-o para aonde quer que eu fosse. Lia-o e relia-o, incansavelmente. Certa vez, com o dedo apontado para o belo desenho do Nautilus, aproximei-me de meu pai e perguntei-lhe:
     — Esse tal de Júlio Verne viveu mesmo dentro deste submarino?
     — Não, filho, claro que não. É só imaginação...
     “Meu Deus! Quanta imaginação tinha esse Júlio Verne...”; pensei.
     Para uma criança de doze anos, talvez o mais comum fosse ir para o quintal e lá construir algo que se parecesse com um submarino. Ou apanhar um tecido e dele fazer uma improvisada túnica. Depois, autointitular-se “capitão Nemo” e bradar algumas palavras de ordem. Mas nada disso me ocorreu, apenas fiquei enfeitiçado naquele universo: o universo de Júlio Verne. E tocado por uma possibilidade: a possibilidade de um dia poder criar minhas estórias...
     Já adulto, sempre que passava por uma dificuldade no trabalho, ou quando me  sentia impotente diante de alguma injustiça, pensava: “Quando estarei livre para escrever minhas estórias? Quando poderei me sustentar apenas escrevendo estórias?”.
     Agora, não havia dificuldade ou injustiça. Não havia sequer um trabalho... Solitário ali estava, no alto daquele morro, sentado num banco de uma pracinha esquecida, apenas contemplando o imenso vale...





     3.



     Um mês depois...
     O desespero tomara conta de mim. Havia duas semanas que sequer fazíamos a feira, a dispensa e a geladeira estavam vazias. O mirrado salário de minha esposa mal dava para as despesas básicas da casa...
     — Alô, é o Pélico...
     — Como vai, professor?
     — Vou indo...
     — Escute! Pra variar estou sem tempo. Então vou direto ao assunto. Tenho um trabalho pra você. Um trabalho pra ser feito em quarenta dias, está bem?
     Era o rapaz da empresa de IT, aquele que no passado me pagara mal. Mas a necessidade era tanta que de imediato disse sim.
     — Veja bem! Eu disse quarenta dias, mas exijo dedicação integral: no mínimo doze horas por dia, está bem?
     — E quanto me pagará por isso?
     — Mas o que é isso, professor! Antes de querer saber do que se trata já quer saber quanto vai ganhar?
     — Perdoe-me, mas é a necessidade...
     — Está bem! São mil dólares!!!
     Engraçado! Sempre que o assunto era dinheiro, só me dizia os valores em dólares, nunca entendi por que falava assim...
     — Você poderia me adiantar quinhentos? Só para as despesas básicas...
     — Mas que mania é essa que vocês professores têm! Nada de adiantamento! Pagamento só no final do trabalho... É pegar ou largar! — peguei!
     Quinze dias depois, já concluído cinquenta por cento do trabalho, ele me ligou...
     — Professor?
     — Sim, é ele.
     — Amanhã teremos uma reunião importantíssima com o pessoal da Universidade... Você poderia nos apresentar alguma coisa?
     — Claro que sim!
     — A reunião está marcada para as quatro da tarde. Quero tudo em Power Point. Bem, você já sabe como é. Até lá...
     Às duas da tarde, já ia eu subindo a íngreme ladeira em direção ao ponto final do lotação. Dez reais! Era tudo o que tinha no bolso: para o lotação e o metro, ida e volta.
     No meio da subida, minha visão escureceu. Sentindo-me um pouco zonzo, sentei-me no meio fio e recostei-me numa árvore. Um instante depois...
     — Senhor, senhor?
     Olhei para cima e vi a expressão apavorada de uma adolescente que batia em meu ombro.
     — O senhor está bem?
     Não a reconheci, mas com certeza morava por ali, pois estava bem à vontade. Talvez, mesmo de vista, já soubesse algo sobre mim.
     — Posso ajudá-lo? Quer se levantar?
     — Não, não! Já vai passar... Acho que minha pressão caiu, já vai passar...
     — Se quiser, posso acompanhá-lo até sua casa.
     — Não, não... Não será necessário. Obrigado!
     Por uns minutos, quieta ali ficou, também sentada no meio fio, concentrada em minhas expressões, em meus pálidos sinais. Mas logo recobrei os sentidos e fiz menção de me levantar. Então, firme ela me segurou, dando-me apoio.
     — Obrigado, querida! Já me sinto bem melhor. Se quiser ir... Eu moro bem próximo daqui.
     — Eu sei — disse ela, ainda preocupada.
     — Tchau, querida. E, mais uma vez, obrigado.
     E segui meu caminho. Quando dobrei a esquina da rua onde moro, olhei para trás e a vi, a poucos passos de distância, encolhida por detrás de uma árvore... Cinquenta metros adiante, já ao portão de minha casa, mais uma vez olhei para trás. E lá ela estava, ainda me acompanhando com os olhos, atenta... Acenei.
     Mais tarde, já em casa e sentado à mesa, o telefone tocou...
     — Professor? Você ainda não saiu de casa?
     — Eu passei mal, não vai dar pra eu ir...
     — O que está me dizendo, professor! Ficou louco?
     — Não, meu velho, fiquei fraco... Eu lhe disse que precisava de um adiantamento...
     — Se não pode com uma gata pelo rabo, não devia ter aceitado o projeto... Passar bem!
     Sim! Meu corpo havia sentido a falta dos nutrientes básicos. Sucumbiu. No dia seguinte, ele não só me desligou do projeto como também exigiu que mandasse tudo que já tinha feito. E mais, não me pagou um centavo pelo trabalho... “Tens sorte de eu ser um cara legal e não te processar!”; disse. Depois, bateu o telefone na minha cara.
     Súbito, antes de desligar o telefone, lembrei-me de meu passado. Lembrei-me de como eu era exigente com as pessoas, pois não tolerava de ninguém um só deslize. Fútil, só queria saber de carros novos, de usar roupas da moda, de frequentar os melhores lugares.
     “Meu Deus! Como custa caro a maturidade...”; pensei.





     4.



     Ainda sentado à mesa, sobre os braços entrelaçados recostei minha cabeça, e o mal-estar que as duras palavras provocaram em mim deu lugar a um sono suave, regenerador...
     Mais tarde, quando acordei, notei que a tarde tinha mudado sua cor. E já me sentia bem melhor, pois as palavras que tanto me feriram no princípio da tarde já iam distantes...
     Aliviado, voltei meus olhos para o lado e, sobre uma montanha de livros, notei que um deles se destacava. Então me lembrei do pedido que o amigo me fizera dias atrás...
     — Professor! Nada entendo de Literatura... Por isso, gostaria de ouvir sua opinião sobre esta biografia — e ágil estendeu o braço em minha direção.
     — Interessante! Gostei da capa! — disse-lhe, lacônico.
     — Escute bem, professor! Faça a leitura com muito carinho, está bem? Afinal, trata-se do meu ídolo!
     No dia seguinte, de uma só tacada, li mais de cem páginas... Depois, voltei à capa para de novo ler o nome do autor. Súbito, pensei: “Mas que ousadia! Como pôde vestir com trapos um Rei!”. Indignado, não quis mais saber do livro.
     Dias depois, sem ter nenhum trabalho e só com o pouco do livro que restava em minha memória, resolvi escrever algo. “Caso me esqueça de algum fato, é porque não era importante”; pensei.
     Tendo já escrito três capítulos, após uma semana de dedicação ao texto, algo surpreendente me aconteceu. Enquanto tomava banho, veio-me de uma vez todo o quarto capítulo do livro. Na verdade, já soprava em mim aquela misteriosa voz de que tanto falam os escritores. Com a voz, vinha também o ritmo, a escolha vocabular e uma mágica atmosfera. Terminado o banho, ainda enrolado na toalha, sentei-me à mesa e, de um só fôlego, escrevi o capítulo.
     Na manhã seguinte, enquanto tomava o café, de novo o fato se repetiu: num segundo me veio à mente o quinto capítulo do livro. Só então tive a certeza: feito água represada, o livro já existia dentro de mim... Era só uma questão de tempo.
     Mas dessa vez não quis escrevê-lo. Antes que adquirisse vida própria, resolvi interrompê-lo. “E se o cantor não gostar e quiser mudar alguma coisa? E se, depois de publicado, ele resolver me processar? Não, não... Antes, preciso conseguir sua autorização”; refleti.
     A partir daí, todas as minhas forças (que não eram muitas) foram direcionadas para isto: obter do cantor a autorização para publicar o livro. Afinal, já havia quatro capítulos escritos... Assim, o artista teria uma boa ideia de como tudo ficaria. E várias foram as tentativas...

     De seu escritório no Rio de Janeiro.
     — Sim, meu senhor... Já sei quem você é. Afinal, é a terceira vez que me diz seu nome. Na verdade, o que o senhor quer dele?
     — É que eu estou escrevendo um livro sobre...
     — Xiii, isso não vai dar certo!
     — É possível marcar uma reunião?... Ou simplesmente lhe entregar meus originais?
     — Ouça! Na verdade, ele está viajando... Não! Em hipótese nenhuma ele aceitaria.

     De seu escritório em São Paulo.
     — Xiii, não há a menor possibilidade, senhor, nem reunião, nem leitura dos originais. Eu diria que nem mesmo o empresário dele o receberia... Ah, sim! Tenho certeza disso!

     Num bar noturno, em São Paulo, sentado à mesa com um de seus músicos.
     — Xiii! Nem pensar, meu rapaz, estamos proibidos de falar sobre o assunto. Não, jamais faria essa “ponte” pra você. Não, não faria isso por ninguém... Esqueça!

     Do escritório da gravadora, no Rio de Janeiro.
     — Xiii, acho que procurou a pessoa errada... Por que não procura logo a secretária particular dele?
     — Você pode me fornecer o número?
     — Não, não posso!
     — Você sabe quem poderia?
     — Não... Desculpe, senhor, está perdendo seu tempo, jamais irá conseguir essa liberação... Jamais!





     5.



     Dois dias depois...
     Numa manhã, nada tendo para fazer, comecei a vagar pela internet, sem ter em mente qualquer propósito... De repente, no canto da página de um portal, uma fotografia me chamou a atenção: era a foto do filho do cantor.
     Não me recordo do teor da reportagem, mas um link me levou a outra página, em que dela se destacava uma linda foto: pai e filho abraçados. A matéria dava ênfase à relação de amor que existe entre eles... É comum o filho dizer que tem o pai como ídolo. Na reportagem, era o pai que dizia ter o filho como ídolo. “Interessante”; pensei.
     Por um bom tempo, deixei a foto estampada na tela do computador. Minutos depois, levantei-me, fui à cozinha preparar um café e voltei com o copo na mão. Enquanto o tomava, veio-me um pensamento: “Talvez o filho seja o caminho”. No mesmo instante, iniciei uma rápida pesquisa na internet, e logo cheguei a um telefone.
     — Por favor, eu gostaria de falar com o apresentador do programa. É possível?
     — Não, não é possível. Ele está viajando, está na Europa. Talvez volte em quinze dias.
     — Quando voltar, você acha que é possível eu conseguir um contato com ele?
     — Do que se trata?
     — É que eu gostaria de escrever um livro sobre...
     Antes mesmo de completar a frase, afoita, ela interrompeu minha fala.
     — Não, não... Ele é um rapaz muito discreto, não gosta de aparecer.
     — Perdoe-me, mas você se equivocou... Na verdade eu gostaria de escrever um livro sobre o pai dele, entende?
     — Xiii, você também? Mas enfim, o que você quer dele?
     — Gostaria que me ajudasse no contato, que fizesse a “ponte”, entende?
     — Ah, sim...
     — Você acha possível?
     — Vamos fazer o seguinte: o senhor deixa comigo seu telefone e assim que ele voltar da viagem eu faço contato com o senhor. Está bem assim?

     Três semanas depois...
     — Olá, como vai? Eu sou o senhor que deseja marcar uma reunião com o apresentador do programa...
     — Ah, já sei quem é.
     — É que você me disse que ligaria em quinze dias, não foi?
     — Sim, é verdade... Bem! Ele já voltou e eu também já falei com ele.
     — E aí?
     — Olha! Além de não topar, ele ficou muito chateado comigo. Disse pra eu não dar ouvidos para esse tipo de proposta. Então, acho melhor o senhor esquecer.
     — Estando assim tão próxima dele, você teria outro caminho?
     — Olha! Talvez o melhor caminho fosse procurar a assessora que cuida dos seus direitos autorais... Acho que é a pessoa mais indicada.
     — Ela é acessível?
     — Sim... Por que não tenta?
     — Você pode me fornecer o número?
     — Claro que sim!
     — Obrigado, querida!
     Manhã do dia seguinte...
     — Xiii, nem pensar, senhor... Não há a menor chance de ocorrer esse encontro.
     — Mas por quê?
     — Propostas iguais a esta ele já recebeu centenas... Escute! Já trabalho com ele há mais de dezoito anos... Muita gente faz esse tipo de pedido, inclusive pessoas próximas a ele, pessoas famosas, escritores... Alguns até consagrados. Mas ele não dá a menor atenção. É melhor esquecer, senhor!
     — Escute, já escrevi alguns capítulos e posso lhe garantir que ficaram bons... Se ao menos os originais chegassem às mãos dele... tenho certeza de que iria gostar!
     — Ingenuidade sua... Mesmo que tenha escrito uma obra-prima, mesmo assim, ele não aceitaria. Se mandar os originais, vai ser da mão para o lixo. Esqueça, senhor! De uma vez por todas, esqueça! E digo mais, se publicar alguma coisa e nós conseguirmos estabelecer uma relação entre o que escreveu e o cantor, não tenha a menor dúvida de que iremos processá-lo. Prontamente! E não custa lembrar que nossos advogados são bem caros, entendeu?
     — Entendi...
     — Assim é bem melhor... Passar bem!
     Revoltado e com as mãos trêmulas, apanhei os originais e os rasguei... “Fique tranquila que eu mesmo posso jogá-los no lixo!”; pensei, enquanto apagava da minha agenda todos os números ligados ao cantor.





     6.



     Havia três dias que o verão começara, e sua nítida luz incidia sobre a pequena sala de oração, mas não de forma direta, pois logo na entrada havia uma parede que servia de anteparo. Ao fundo, numa cadeira encostada na parede, em comunhão eu permanecia.
     Vez por outra abria os olhos e os detinha na imagem de Jesus, que majestosa cobria toda a parede oposta. Ao estilo renascentista, a pintura retratava apenas Seu rosto, meigo, onde dele se destacava um lindo par de olhos azuis.
     Por um instante pensei em Auguste Comte, Philipp Frank e Hans Hahn, filósofos que tiveram fortíssima influência em minha formação. Porém, depois que o véu da imensa noite descera sobre mim, nada daquilo (que escreveram ou pensaram) pôde me acolher — mesmo porque o positivismo não fora pensado para tal fim.
     Aqueles anos todos em contato com a ciência e todo o conhecimento advindo dessa dedicação, em nada me ajudaram... Nada, absolutamente nada conseguira abrir caminho para mim.
     Por outro lado, sempre avesso à religião, nem sequer aprendera a rezar ou orar. Além do mais, achava ridícula a ideia de me ajoelhar diante de Deus: “Um ser superior, sendo onipotente e onipresente, não exigiria de mim um gesto de tamanha submissão”; pensei. Porém, quando meus olhos se erguiam e se deparavam com a bela imagem de Jesus, parecia que minha razão lentamente se dissolvia, e do nada uma suave alegria aflorava em meu coração. E foi durante um desses momentos que, com meus olhos umedecidos, sozinho naquela sala fiz uma oração: “Senhor Jesus, nosso pai... Conceda a mim um pouco da Sua infinita misericórdia, e faça com que, em meio a tanta confusão, eu encontre uma saída...”; e uma imensa paz baixou sobre mim.
     Mais tarde, ainda de olhos fechados comecei a rezar um “Pai Nosso”, mas errei toda a letra. Depois, abri meus olhos e de novo os demorei na atraente imagem, e Lhe pedi desculpas pelo mau jeito, por ser tão ignorante nessas questões. Lentamente me levantei, fiz o sinal da cruz e sai.
     “A topologia deste lugar lembra o bairro onde moro: dois morros separados por um vale”; pensei... É verdade. Só que aqui, onde estou agora escrevendo, o vale é bem mais amplo: além da imensa várzea, há no centro um rio: o rio Tietê. Daqui, da janela, até posso ver parte de seu extenso leito. E lá, onde fica a salinha de oração, só o que existe no vale é uma avenida... E era em sua direção que eu caminhava, lentamente.
     Meia hora depois, alcancei a metade do morro que fica do outro lado do vale. Atravessei uma segunda avenida e me deparei com um Shopping. Estávamos às vésperas do Natal, e de tudo havia em sua fachada: enfeites, árvores natalinas, bonecos e luzes... milhares de luzes. Num lento caminhar, mais de cinquenta metros foram vencidos e, finalmente, cheguei ao ponto de ônibus. Depois, debaixo de uma cobertura de acrílico, tomei assento num pequeno banco.
     Não havia ninguém ao meu redor. Olhei para cima e reparei na imensa noite que a pouco descera: uma linda noite de verão.
     Havia mais de oito horas que nada comia. “Ah, seria tão bom se eu pudesse entrar no Shopping para tomar um café”; pensei. Mas nada trazia no bolso, a não ser o bilhete da condução...
     De repente, ouvi o toc-toc de um salto feminino se aproximando. Depois, bem próximo a mim, ele cessou. Apesar de estar de perfil para ela, notei que seu olhar se mantinha fixo na minha direção. Disfarçando, voltei meu rosto na direção dela. De frente, confirmei a impressão: ela tinha mesmo seus olhos pregados em mim, quase me trespassando. Confesso que não pude suportar o peso daquele olhar. “Deve ser uma ex-aluna. Só uma ex-aluna possui esse olhar”; pensei.
     Naquele momento, imaginei o que devia estar pensando: “Será ele mesmo? Aqui neste ponto de ônibus e vestido dessa maneira? Mas como pôde chegar a isso?”.
     Não suportei ficar ali. Preso num suspiro, levantei-me e comecei a caminhar. Foi quando, um pouco mais adiante, resolvi parar. Desta vez, bem próximo à entrada dos carros. Aliviado, sentei-me na amurada que divisa o Shopping da avenida e, quase em transe, sob as luzes natalinas, pensei: “Quantas vezes com meu carro por ali passei. Quantas vezes por aqui fiz compras, vi filmes, jantei... Ah, e os vinhos! Quantos bons vinhos aqui comprei!”. E, no segredo de minhas ilusões, sentia a noite cair serena sobre mim...
     Cada qual tem seus temores. O meu era não poder levar para casa algo que lembrasse aqueles ares natalinos, ares que pertenciam às minhas antigas memórias.
     E uma imensa tristeza baixou sobre mim. E com ela vieram as lágrimas. E mais uma vez pensei: “Neste ano não haverá festas para nós. Nem ceias. Nem presentes para minha esposa, minha amada, minha vida...”.
     De um instante, o silêncio se interpôs entre mim e o mundo. Era tão espesso que quase podia tocá-lo com minhas mãos. Fechei meus olhos. Ao silêncio se somou a escuridão e, de um instante, veio-me a mente um personagem: Renato Reis e toda sua estória...

                                                                                             por Silvio Pélico.


PS: A estória foi o livro: infinito amor...

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